Ana Rosa, personagem de Mastigando Humanos. O Jacaré nutre por ela(e) e por seu Yakisoba, grande afeto.

segunda-feira, 23 de agosto de 2010

PENSANDO A REPRESENTAÇÃO. NÍVEIS DE APROXIMAÇÃO...


“Em todo o mundo habitado, em todas as épocas e sob todas as circunstâncias, os mitos humanos têm florescido; da mesma forma, esses mitos têm sido a viva inspiração de todos os demais produtos possíveis das atividades do corpo e da mente humanos”
(CAMPBELL, Joseph)


A história nos conta as turbulências e revoluções de cada época. Nos aponta seus mitos, seus heróis, suas falhas e doenças, do corpo e do “espírito”.
Toda época reinventa a filosofia, a “espiritualidade”, como nos diz Susan Sontag, em seu texto A estética do silêncio. A “espiritualidade” em um sentido essencial, de compreensão de mundo, fazer de realidades, e junto com isto, de representações do “espírito” do homem, das significações e das próprias épocas.
Falar em representação nos remete à Arte, que em seu sentido primeiro, atribuído ao filósofo grego Platão, mímesis, quer dizer imitação, representação do mundo das idéias. Durante muitos séculos o fazer artístico remetia a retratar, a descrever e caracterizar o mundo, como em metáfora, uma fotografia.
As concepções Antigas, baseadas nos preceitos platônicos e aristotélicos estão presente em muitas das obras escritas do período a que atribuímos obras de seus contemporâneos àquelas escritas poucos séculos depois.
Consideremos a obra de Homero, Odisséia.
Temos Odisseu, o herói. Ele mesmo nos conta quem é e descreve seu tempo, lugar, apresenta sua história. A história conta com tempo cronológico bem definido, o narrador-personagem está bem descrito (nesse caso, por ele mesmo), define bem os espaços em que se dão as ações e mais, apresenta catarse. Aquilo que Aristóteles consideraria um perfeito exemplo de construção mimética, um bom exemplo de verossimilhança dentro da obra.
Joseph Campbell nos fala sobre a Jornada do Herói, em seu texto O herói de mil faces(Cultrix/Pensamento,1949). Para Campbell, tal jornada está representada pela condição do homem dentro das ações na obra, pelas ações e pensamentos que torneiam o herói dentro de sua aventura. A condição do herói está representada em etapas, descritas por Campbell como: O chamado da aventura; a recusa do chamado; o auxílio sobrenatural; a passagem pelo primeiro limiar; o ventre da baleia; o caminho de provas; o encontro com a deusa; a mulher como tentação; a sintonia com o pai; a apoteose; a benção ultima; a recusa do retorno; a fuga mágica; o resgate com auxílio externo; a passagem pelo limiar do retorno; senhor dos dois mundos; liberdade para viver.
Ora, Odisseu de Homero está perfeitamente encaixado em todas estas fases propostas por Campbell. No entanto, boa parte das obras no período clássico também o estão, como Tristão e Isolda.
A obra Tristão e Isolda é o perfeito exemplo de ilusão referencial. Temos uma história, que nos é contada por um narrador em terceira pessoa, nos descrevendo espaço, personagens, ações. O trecho destacado, no qual apreciamos a figura de Marcos, descrito bem de acordo com aquilo que Campbell propõe, nos dá a perfeita idéia de um quadro, com tudo encaixado como de acordo para representar o real, criando, no entanto, espaços, pessoas e situações fictícios. O narrador nos “pinta” Marcos, nos explicita sua personalidade e história, cria o herói, o dono da jornada.
Todo este formato, apresentado tanto em Odisséia quanto em Tristão e Isolda é facilmente percebido e a posição do herói, do “espírito” do homem neste contexto, facilmente detectado.
No trecho da obra de Santo Agostinho, no entanto, nos deparamos com um fluxo de consciência mais “personalizado”. Nos enxergamos com mais força (nós espectadores).
Por que?
A relação filosófica e metafísica em destaque nesta obra é muito forte. Santo Agostinho, de repente, não está nos contando uma “história”, não está caracterizando nenhuma personagem, nem descrevendo nenhum espaço ou tempo. Apresenta um fluxo de consciência, uma expressão interior. Caracteriza sim, o Ser Humano, suas dúvidas, seus questionamentos e sua relação com o metafísico, mas não o faz contando uma seqüência de ações, não cria uma personagem para espelhar.
Encontramos a meta-representação, descrita por Foucault?
Não, pois Santo Agostinho “pinta” na realidade um auto-retrato, apresenta na verdade facetas do espírito humano, do próprio espírito. Neste período a arte ainda não tinha tanta autonomia, e ainda que seja uma representação do íntimo, é uma representação, ainda assim não somos capazes de enxergar os Ardis do artista.
Aquilo que caracteriza a obra de Santo Agostinho, Tristão e Isolda e Odisséia é o conceito baseado na filosofia grega que perdurará por todo o renascimento, fase esta em que filósofos, artistas e intelectuais estavam interessados em “desencavar” as idéias dos grandes filósofos do mundo ocidental, a fim de afastar a nuvem negra que se estabelecera à era medieval.
Isto a que chamamos de ilusão referencial está diretamente ligado aos conceitos da mímesis. A função da arte, então, é representar, retratar, descrever. Os mecanismos em nada interessam, pois é arte aquilo que melhor consegue representar o mundo exterior e interior, o espírito e estética humanos.
No período compreendido entre os séculos XVII e XVIII, nos deparamos com um momento de transitoriedade do fazer artístico representacional, incluindo a literatura.
Nos trechos das obras de Henry Fielding e Goethe, percebemos fatores novos em relação ao clássico, algo que talvez chegue perto do que Foucault entenderia como meta-representação.
Em ambos os trechos o tempo não é bem definido cronologicamente, nem encontramos ações bem descritas, ou catarse. A personagem fala de si mesma, dos próprios sentimentos, sem se caracterizar demais, ou se colocar na condição de representação do espírito humano. A relação com o espectador se torna mais próxima, visto que “entramos” no pensamento da personagem.
No quadro Las meninas, analisado pelo próprio Foucault, vemos um homem à direita e ao fundo, que tudo vê, permanecendo, porém, com um pé para dentro e o outro para fora da sala em que se dão as ações no quadro. Seria esta a representação de uma transitoriedade dos papéis estabelecidos nas obras ao longo dos séculos, em que quase alcançamos os ardis de que se utilizam os autores, mas ainda estamos atados a muitos dos laços da narrativa clássica (sendo o maior de todos o fato de conceber a arte como mera representação, dependente de um universo ficcional).
Tanto Fielding quanto Goethe nos descrevem sentires e ocasiões, pessoas e seus atributos, mas quem nos fala são as personagens. Não existe diálogo direto. Em Fielding ainda nos deparamos com um narrador em terceira pessoa.
Sobre este período transitório podemos dizer que se percebe tênue a intenção do autor, mas como fez Velásquez, este não se pinta pintando a obra que pinta. A arte literária vem mostrar traços de autonomia mais adiante.
Com o “boom” estruturalista(séculoXX), o fazer da palavra tomou para si mais importância até que suas significações. Todas as noções de estranhamento e de autonomia que criavam naquele momento viriam a contribuir para o conceito de meta-representação, que busca Foucault.
Em um trecho da obra de James Joyce, Ulisses, nos deparamos com um fluxo de consciência que poderia ser tomado como o mesmo tipo de fluxo que tem Santo Agostinho. No entanto, existindo ou não história, personagem, herói e jornada, o fazer da palavra se mostra num estado novo, completamente estranho.
O trabalho com a linguagem é diferenciado para provocar efeito, não apenas da história pela história, leva-se em consideração e acopla-se às suas noções de intensidade e qualidade como narrativa, os instrumentos através dos quais ela fora realizada.
Neste sentido, alcançamos o autor. A palavra é enxergada, por trás da representação pura e simples.
O maior traço distintivo entre os Ulisses (lembrando que a obra de Joyce também se refere a uma “odisséia”. A da vida de um homem em 24 horas) se dá justamente nesse caráter mais intrínseco de caracterização das personagens. As palavras, de acordo com as tendências modernas, tomam para si funções diferenciadas, caráter mais independente, são capazes de interagir por si com o espectador.
Um tipo de diálogo ainda mais profundo com o fazer da obra se dá em Confissões de Ralfo, de Sérgio Sant’Anna.
O homem que nos vai “contar a história”, também nos revela os instrumentos de que se valerá para tanto. Nos revela uma intencional “abordagem fantasiosa” na história da própria vida, que ele irá contar. Como Velásquez, se pinta pintando o quadro que pinta. Torna a si próprio um mito, desmascara a construção da ficção, a construção do herói de Campbell.Nos diz: “veja, estou criando uma ficção, um herói e sua jornada, e é assim que o irei fazer”.
Este é o caráter do efeito do real, que não está mais preocupado como a ficção perfeita e enquadrada, mas sim com uma aproximação maior do real, através dos instrumentos usados para produzir ficção.
“Isto é assim e eu te mostro como se faz”.
Para Susan Sontag “Isto nos leva então à eliminação do ‘tema’ (do ‘objeto’, da ‘imagem’), à substituição da intenção pelo caso e à busca pelo silencio”.










Referências bibliográficas:

SONTAG,Susan; A vontade Radical;R.J. ed.2. Escrituras. 1966.
CAMPBELL, Joseph; O herói de mil faces; S.P.Cultrix/Pensamento.ed.14.2006.
FOUCAULT, Michel; As palavras e as coisas.
O Santiago deu uma entrevista à revista Off-line, que eu gostaria que tivesse sido dada a mim, em que, pelo menos pra mim, ele reflete bastante da postura do autor diante dos enfrentamentos teóricos que vem sofrendo.
Enjoy It





ENTREVISTA-ENXAQUECA

Que aspectos de sua literatura você considera que o inscrevem em nosso tempo? Há similitudes entre sua literatura e a produção de outros autores da mesma geração que a sua capazes de configurar alguma proximidade ou diálogo?

Isso é impossível de eu identificar. Vivo em nosso tempo, escrevo em nosso tempo, mas não estou preocupado especificamente em falar deste tempo ou negá-lo; então identificar os traços do nosso tempo na minha literatura não é apenas uma tarefa para outros, como para ser feita no futuro. O mesmo em relação a essa comparação, proximidade ou diálogo com autores da minha geração – posso dizer que a mim me interessa mais a diferença (se não posso falar de “exclusividade”), mas é claro que é inevitável que surjam traços e temas comuns na literatura de quem está produzindo hoje, de quem cresceu na mesma época, vendo os mesmos programas de TV, as mesmas leituras obrigatórias na escola. Acho que é isso, não é uma questão que eu possa responder…

A exemplo do que alguns críticos chamaram de geração 90 e de outras escolas do passado, você acredita que faça parte de algo como uma geração 2000 ou de um trabalho literário que tenha, além de suas singularidades marcantes, também algo de coletivo ou transversal? Se isso existe, como se deveria denominar a sua geração?

Não. A geração 90 foi um nome não apenas adotado pelos críticos, mas pelos próprios escritores que se encontravam, discutiam e acabaram gerando algumas publicações, como as antologias organizadas pelo Nelson de Oliveira e a revista PS:SP, do Marcelino Freire. Posso estar errado, mas a mim parece que essa geração tinha, se não um plano literário comum, pelo menos um relacionamento afetivo mais próximo, formavam uma turma. Isso sem falar em outros movimentos anteriores. A minha geração não passou por isso. Tenho uma relação diplomática, cordial, e até carinhosa com alguns escritores de idade próxima da minha, mas nos encontramos apenas esporadicamente, por acaso, em eventos literários. Então, não há trabalho coletivo – e para mim parece muito natural e saudável; para mim, o grande prazer da literatura é essa independência de uma arte individual, se eu quisesse fazer algo coletivo faria cinema, ou música, ou teatro. O que existe de comum, novamente, é espontâneo e eu não poderia localizar. Formamos uma geração – Geração Zero Zero, que seja – pela idade e por traços comuns não planejados.


Muitos sectários, incluindo críticos e jornalista, ficaram congelados nos autores pré-anos 60, especialmente no que se convencionou chamar de modernismo, e afirmaram não encontrar nada de novo no que se produziu nas décadas subsequentes. No entanto, muita coisa inegavelmente surgiu de lá pra cá. Quais são as principais características dessa nova literatura contemporânea brasileira? O que há de peculiar nela? Em sua análise, que autores renovaram, de alguma forma, a literatura brasileira nos últimos 20 anos? Quem está renovando agora?

Ah… Novamente, não é uma pergunta que eu possa responder. Mas talvez a grande mudança pela qual a literatura tenha passado dos anos 80 para cá seja o estreitamento com a cultura pop – a apropriação de referências da “cultura de massa” em universos genuinamente literários. Depois dos anos 2000, quando o conceito de cultura de massa foi relativizado, talvez tenha havido uma maior “universalização fragmentada” dos temas e realidades retratados. A literatura deixou de espelhar especificamente nosso país, passou a focar universos próprios, individuais, que podem ecoar num leitor da Noruega ou causar um grande estranhamento num leitor argentino.

Em suas descobertas como leitor e autor, quem são os autores estreantes que mais vem lhe chamaram a atenção recentemente, mesmo que sejam promessas? Você poderia nos indicar alguns nomes entre primeiros livros, blogueiros ou contatos diretos com jovens talentos? Há algo vindo das universidades?

Há um jovem poeta e contista paulistano chamado Hugo Guimarães, que tem uma força espontânea e transgressora impressionante. Uma romancista carioca, Victoria Saramago, que está se tornando uma grande narradora. E Christiano Aguiar, um jovem literato do Recife que tem uma produção bem interessante.

De alguma forma você acha que os nomes mais estabelecidos devem ajudar a iniciar ou descobrir esses potenciais novos autores?

Não. Já é tão difícil para um autor encontrar leitores, encontrar outros autores é um extra, não um dever ou uma necessidade.

Em que medida as plataformas digitais e a Internet afetaram a produção literária? Confundem-se, nas discussões, as questões o futuro da literatura e o futuro do livro, como objeto material. O que você pensa sobre esses temas?

O livro é apenas um veículo, e sua sobrevivência é uma preocupação para as editoras. Eu escrevo, gosto do objeto livro, mas se ele morrer, estarei publicando em e-books, na tela, ou o que seja. De qualquer forma, acho que o boom da Internet modificou mais os temas literários do que os suporte. Os autores tiveram espaço e puderam concentrar-se em universos mais particulares, como eu já disse, e foi basicamente isso. A Internet não modificou tanto o texto literário em si, a forma da escrita e o formato dos livros. E se a escrita não é alterada com isso, não devemos nos preocupar com o futuro, morte ou sobrevida do livro. Isso é para os fabricantes de papel.

(entrevista para a revista Off-line: http://www.offline.com.br/blog/?p=882http://www.offline.com.br/blog/?p=882 -