Ana Rosa, personagem de Mastigando Humanos. O Jacaré nutre por ela(e) e por seu Yakisoba, grande afeto.

sexta-feira, 22 de outubro de 2010

A FICCIONALIZAÇÃO DO AUTOR: SANTIAGO NAZARIAN E SEUS PERSONAGENS-AUTORES



A hipótese norteadora deste trabalho é a de que o autor, depois da sua morte, no final dos anos 60, renasce no contexto da contemporaneidade. Consideraremos, aqui, a importância das novíssimas mídias, e em especial da Internet, como potencializadoras da exposição de si o que implica, para nossos pressupostos, a ficcionalização do eu, interessando-nos especificamente refletir sobre a construção ficcional da figura do autor.
Cabe, antes de qualquer coisa, traçar um breve percurso sobre o modo como a figura do autor foi compreendida ao longo dos tempos, até que possamos explanar os fatores que cercaram sua recente morte.
Por muito tempo, a autoria sequer era considerada como um conceito ligado à produção artística. Estamos nos referindo aqui às concepções norteadoras do fazer “mimético” na Idade Média, especificamente. O valor atribuído à obra estava ligado diretamente à mais perfeita imitação do mundo existente, sem que fossem reconhecidas criatividade ou originalidade ao responsável pela operação, considerado mero artífice.
Com a revolução burguesa no século XVIII, os mais diversos espaços da existência foram reconfigurados. Deixando de ser valorizada como mera imitação, a arte não mais busca a retratação perfeita de objetos pré-existentes, mas constitui-se a partir do olhar subjetivo de seu autor, de suas vivências particulares. Nesse contexto, a figura do autor se levanta com toda força, realçando seu “eu”.
A partir desse momento os olhares concentram-se sobre a figura do autor, entendido como origem da criação, figura que pode ser entendida como fonte de toda explicação. À medida em que o século XX avança, as coisas começam a mudar. A teoria literária enfatiza a importância da linguagem artística autônoma e isso implica a revisão dos laços que envolvem a obra e suas explicações baseadas na biografia, diminuindo a importância dos elementos externos à letra do texto, como defendiam, por exemplo, os formalistas russos.
Mas o golpe mais duro contra o império do autor é dado por Roland Barthes, em seu ensaio A morte do autor. Aí, o crítico francês atesta sua discordância em relação à figura autoral como fonte da criação literária, responsável absoluto por seu surgimento e manutenção:
“a imagem da literatura que podemos encontrar na cultura corrente é tiranicamente centrada no autor, na sua pessoa, na sua história, nos seus gostos, nas suas paixões; (...) a explicação da obra é sempre procurada do lado de quem a produziu, como se, através da alegoria mais ou menos transparente da ficção, fosse sempre afinal a voz de uma só e mesma pessoa, o autor, que nos entregasse a sua confidência.”(BARTHES;1968, p. ?)

Por negar veeementemente a opressão dessa figura que atua como uma sombra sobre a obra e, por tabela, sobre o leitor, a solução de Barthes é radical, pois sugere a morte do autor. Pensando no momento atual, se quiséssemos ler ao pé da letra a citação de Barthes diríamos que a tentativa dramática do crítico francês foi em vão, pois o cenário contemporâneo é muito semelhante ao do final da década de 60.
Neste trabalho gostaríamos de arriscar que apesar do decreto de sua morte, o autor continua vivo e pode emergir como problema teórico principalmente se investigamos os diversos processos de reconfigurações de seu ressurgimento a partir de sua circulação nas novíssimas mídias e redes sociais - principalmente no ambiente virtual (blogs, myspaces, orkut e twitter).
Nossa hipótese é que a internet se configura como espaço potencializador de uma criação/invenção de si, o que no caso específico da figura autoral, se traduziria como uma ficcionalização da própria figura de autor. Aqui, gostaríamos de observar ainda um tipo de “jogo” provocado por uma ficcionalização de si funcionando em consonância com as expressões autoficcionais na obra ficcional, analisando a construção de personagens-autores.
Para testar minha hipótese, gostaria de tomar como objeto de análise nesse trabalho a construção da persona autoral de Santiago Nazarian. Meu procedimento básico diz respeito à investigação sobre as formas de invenção do “eu autor” de que Santiago Nazarian lança mão nos espaços virtuais em que escreve e se publica para tentar efetuar uma comparação com a atuação de personagens que são escritores em um de seus romances já publicados, Mastigando Humanos.
Antes de passarmos à análise propriamente dita, torna-se importante fazer uma abordagem introdutória para entender-se de que “espaços virtuais” se fala aqui, quais seus mecanismos de funcionamento, a fim de estabelecer uma relação com o que entendemos como uma reviravolta da subjetividade, uma hipertrofia da exposição de si que transforma a vida íntima em espetáculo. Portanto apostamos que “o impacto da internet sobre o ‘espaço biográfico’ (cf.Arfuch) se faz sentir na abertura à existência virtual, às invenções de si, aos jogos identitários, propícios à fantasia da autocriação e ao desenvolvimento de redes inusitadas de interlocução e sociabilidade” (VIEGAS, 2007, p. 23)

O que se observa é que nos blogs, os antigos diários íntimos encontram seus correspondentes “éxtimos”, conforme o trocadilho com a palavra íntimo, proposto por Paula Sibilia (2008). No ciberespaço o público e o privado estão diluídos, já que o íntimo nunca foi tão público ou o público nunca foi tão íntimo. Se antes o diário íntimo era escondido a sete chaves, o que a rede propicia, hoje, é “la vie nue”, a superexposição destes “eus”. Nosso autor contemporâneo pode estar considerando como seu modelo aquela figura de autor entendido como gênio, fonte de surtos de inspiração, oriundos de sua profundidade interior, que abria o coração para se confessar, e que levou Barthes ao gesto radical de condená-lo à morte. No entanto, apostamos que o autor contemporâneo não atua simplesmente para imitá-lo, pois minha suposição é que as condições de sua exposição estão submetidas a uma condição diferenciadora: nosso autor romântico tencionava confessar sua história íntima e selava o compromisso com o desejo de ser “verdadeiro”, mas considerando os espaços virtuais, como assegurar tal premissa? Para que nosso argumento ganhe força, importa-nos valorizar uma outra face atrelada ao espaço virtual: no orkut, msn, facebook, as pessoas podem criar para si a imagem que desejam, inventar suas descrições, suas memórias, seus gostos. A instantaneidade dos processos, a ocorrência de um meio aberto para se chegar ao “outro” estimula a exposição da intimidade, que, nos ambientes virtuais, também é inventada. Considerando nosso argumento de que a rede estimula uma ficcionalização de si, pensamos que a rede torna possível mentir, inventar criar outros personagens e outros eus de si mesmo.
Depois de ter sua morte decretada, o autor quer tatuar a si mesmo em sua própria pele, no sentido de que o suporte de expressão e criação deste autor está na invenção de sua própria figura, na construção de uma carreira de escritor. A imagem da tatuagem vale para nosso argumento, menos pela permanência a que costumamos associá-la e mais por representar uma expressão artística no próprio corpo. Nesse sentido, quando falamos aqui em ficcionalização da figura do autor, não estamos pensando na figura 'real' com nome e sobrenome, em seu nome próprio, mas na imagem recriada pelo próprios escritos, em suas obras, entrevistas concedidas, na recepção de sua produção quando se desenha, então, um nome de autor. Aí então, pode ser que se configure uma outra ficção, baseada num efeito-autor, nascido não apenas de uma performance de escritor, mas que também pode estar presente na obra ficcional através da representação de personagens que são autores.
A partir das postagens recentes (últimos três meses) de Santiago Nazarian em seu blog Jardim Bizarro, da pesquisa de sua biografia e da investigação sobre sua emergência como autor no cenário literário contemporâneo, o presente trabalho procederá a uma análise comparativa com seu romance, Mastigando Humanos, a fim de observar a representação de seus personagens escritores.
Nascido em São Paulo, no ano de 1977, Santiago Nazarian, hoje com 32 anos, conta com cinco romances publicados e um livro de contos de sua autoria engatilhado para março de 2011. Além disso, possui contos em antologias, revistas literárias on-line e publicação de contos, micro-contos e crônicas em seu blog Jardim Bizarro (http://santiagonazarian.blogspot.com/)
O blog do autor conta com movimento semanal, postagens de suas impressões sobre as leituras que faz, seu gosto musical e reflexões sobre o sistema literário em geral (comentário às resenhas de seus livros, lançamentos de livros, encontros literários de que participa). O blog de Nazarian não é simplesmente um diário pessoal. Poderíamos, sim, caracterizá-lo como um espaço de divulgação de sua produção ficcional e de construção de sua performance como autor no cenário contemporâneo. Lendo-se os posts podemos conhecer um pouco da trajetória da “Vida de autor”:
“[...]dia desses uma dessas revistas customizadas me encomendou uma crônica... uma crônica sobre meu avô; "saudades do meu avô", era o tema. Eu não tenho exatamente saudades do meu, mas como escritor faz de tudo, remexi o que lembrava...
Não foi exatamente o que a revista queria. Disseram que ia um pouco contra o "espírito de bem com a vida" deles, não iam publicar, mas agradeceram e prometeram me pagar. Muito bem. Afinal, por que uma revista "de bem com a vida" me procurou em primeiro lugar? É como ir numa churrascaria quando se quer comer sushi. Pode até se encontrar no buffet, mas não é o mais recomendado... [...]” (http://santiagonazarian.blogspot.com/;)
Neste comentário, percebe-se que Nazarian, através de um relato sobre o seu cotidiano de autor, chama a atenção para o caráter de sua escrita, que, como ele próprio sustenta desde o inicio de suas postagens, é uma escrita com traços soturnos, eróticos, com referências ao gótico e ao beat. Se tomarmos como referência estes traços, podemos observar que o que à primeira vista parece apenas confissão de uma personalidade juvenil realça um perfil de escritor tentando se firmar em um estilo de escrita:
“Ah, está chegando Halloween e agora as crianças brasileiras comemoram. Quando eu era uma criança gótica, tudo o que eu queria era que houvesse Halloween por aqui.(...) Esse lado negro da minha personalidade sempre foi muito presente, mas nunca consegui escrever um livro – ou um conto que seja - de terror.” (http://santiagonazarian.blogspot.com/2004)
As duas postagens revelam uma preocupação em criar uma identidade, uma marca autoral.
O blog de Santiago Nazarian comporta, hoje, muita fotografia e diários de viagens do autor, entrevistas, relatos de lançamentos e mesas redondas, tudo ligado à construção de sua carreira como autor. O espaço virtual funciona como uma máquina de divulgação de sua produção e de sua marca-autor. Ali, encontramos desde de links para assistir a suas entrevistas na televisão, até as resenhas publicadas sobre seus livros. O blog funciona simultaneamente como espaço de invenção de si, construção de uma carreira autoral e também como divulgação de sua produção ficcional. Faz uso deste espaço para atrelar a construção simultânea de uma figura autoral a uma obra em construção. Por isso apostamos no rendimento da análise dos relatos de suas experiências como escritor, que podemos ler no blog, em comparação com os personagens-autores presentes em seus romances.
Em Mastigando Humanos (2010), o protagonista é um Jacaré, cujo pseudônimo é Frank Sinatra e cujo nome verdadeiro só é revelado no final. Frank Sinatra é escritor e narrador da própria história, ou memórias, que ganham o mesmo título do romance que lemos, Mastigando Humanos. No correr destas “memórias” o Jacaré nos “conta” como foi parar nos esgotos de uma cidade grande e como é levar a vida no underground:“Poderia lamentar ter desaguado num esgoto, mas, como todos os jovens sempre quis provar o gosto dos subterrâneos” (p.9). Ou ainda: “Eu queria o ócio do caos urbano. Sabe, o mundo sendo despejado sobre sua cabeça e você só abrindo a boca para receber os melhores pedaços.” (p.102)
Em comentário a seu próprio livro Nazarian frisa o caráter underground / pop do romance:
“A vida nos esgotos das grandes cidades é muito rica. Pode-se conhecer a fundo poesia marginal, cultura underground, alta literatura e ciências biológicas. Não é a toa que nosso jacaré se tornou uma figura prodigiosa. Conheça então seus colegas do submundo.”
(Post do blog; 2006)

Boa parte do romance versa sobre a memória do Jacaré sobre a própria escrita das Memórias, o momento em que decidiu escrevê-las, como gostaria de ser lido e o quanto se considera bom escritor. O percurso narrativo vai construindo assim uma “vida de escritor” que apresenta muitas semelhanças com os impasses, opiniões e desgostos com o metier literário, tal como podemos encontrar nos posts do blog do autor Nazarian. Aí, para ficarmos em apenas um aspecto, também nos deparamos com relatos de insubordinação à academia, acusada de conservadora por não acolher suas “idéias subversivas”, nem sua escrita underground (cf. Santiago Nazarian considera as “mesas redondas tradicionais muito chatas” [blog;2009]) Ou ainda em posts de seu blog:
(...)”minha intenção foi desafiar essas minhas pólices, rigores, que também são um pouco as da literatura brasileira em geral. Afinal, como "jovem escritor" eu tenho obrigação de romper com paradigmas. Comecei vencendo os meus próprios.” (BLOG.2006)

Assim como o Jacaré, narrador do romance, busca a certa altura a opinião de outro jovem escritor, mas já consagrado , a aprovação e o reconhecimento do que escreve, é comum encontrarmos no blog Jardim Bizarro, postagens das datas de lançamentos dos livros de Nazarian e de outros escritores contemporâneos, suas afinidades eletivas, menções diversas a resenhistas e jornalistas culturais que comentam e divulgam sua produção, além da repercussão de suas aparições televisivas em circuitos bem pouco acadêmicos:
“Hoje gravei novamente o Programa do Jô. Vai ao ar hoje mesmo! Então provavelmente você está lendo isso
depois de ver o programa. AGORA COMPRE O LIVRO! MASTIGANDO HUMANOS. Hehehe. Você vai se divertir, tenho certeza, confie em mim, é só 25 pila, fácil de achar, compre o livro. DEPOIS, você pode me mandar um email bem carinhoso. Mas compre o livro antes.” (Blog. 2006)

Os dilemas expressos por Santiago Nazarian em seu blog são, como visto nas passagens acima, purgados pelo Jacaré ficcional. Da mesma forma que Santigo Nazarian explora a construção de sua identidade autoral, inclusive apostando em autoelogios a suas publicações, o Jacaré-escritor tem certeza de que possui originalidade e talento:
“(...) Meu livro não era mais um, não. Eu tinha certeza da qualidade do meu texto. E, além do mais, ele não estava curioso para saber o que um jacaré tinha a dizer?” (p.183).
O autor Nazarian inscreve-se e escreve-se autor lançando mão do ciberespaço que funciona como potencializador para a criação de uma atuação do autor no cenário literário contemporâneo.
Se a Internet é esta máquina de autoinvenções, a marca que Nazarian cria para si, a construção de sua identidade como autor expressa nos posts do blog estão em consonância com uma imagem de autor expressa em sua obra, como tentamos demonstrar brevemente a partir da comparação com as dificuldades encontradas no romance Mastigando Humanos por seu personagem principal, o Frank Sinatra-Jacaré-escritor.













REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


BARTHES, R. O Rumor da Língua, S.P. Martins Fontes, 2004.

ARFUCH, Leonor. O espaço biográfico: dilemas da subjetividade contemporânea, R.J. EDUERJ, 2010

NAZARIAN, Santiago. Mastigando Humanos: Um romance psicodélico, R.J. Nova Fronteira, 2006

SIBILIA, Paula. O show do eu: A intimidade como espetáculo. R.J. Nova Fronteira, 2008

VALLADARES, Henriqueta do Couto Prado. Paisagens ficcionais:Perspectivas entre o eu e o outro. R.J. 7 letras, 2007.


SITES

http://www.santiagonazarian.blogspot.com/

http://www.wikipedia.com.br / http://pt.wikipedia.org/wiki/Santiago_Nazarian